domingo, 21 de dezembro de 2025

Threshold

 


Em tempos relembrei a filha perdida e livre que fui, naquelas tardes infindáveis que se convertiam em noites quentes de verão.

Os invernos não eram muito diferentes, nem o são agora, porque há épocas em que o frio apenas muda de forma. Em tempo festivo, quando as famílias se reúnem por hábito, expectativa ou obrigação, reencontro-me com aquelas que me são tudo. Petra, altiva, de pele marmórea e cabelos negros como a noite cerrada. Eva, eternamente jovial, de gargalhada fácil e caracóis dourados que captam a luz como se lhe pertencessem. São duas variantes de mim, Petra a racional, de crueza visceral e olhar afiado, Eva a emotiva, ingénua na forma como se entrega. A minha loucura nasce precisamente entre ambas, nessa tentativa insistente de equilibrar os pratos da balança, procurando, em vão, alguma forma de perfeição nas relações humanas.

A tradição, porém,  já não habita uma casa velha de papel de parede rasgado e tinta estalada. Agora, reúne-se numa sala ampla de paredes antigas, onde a lareira acesa projecta sombras vivas e o cheiro da madeira queimada se mistura com o doce especiado do hidromel. Abdicamos do conforto previsível do sofá, estendemos mantas espessas diante do fogo e sentamo-nos no chão, próximas o suficiente para partilhar calor e estórias comuns, enquanto lá fora a serra contrasta com o seu silêncio profundo e se cobre de um branco absoluto.

As gargalhadas elevam-se, atravessam as muralhas de pedra e deslizam encosta abaixo, cortando o ar frio até te alcançarem, a ti, que me julgavas perdida no tempo, cuidadosamente guardada na gaveta das memórias intemporais.


Pressinto-te antes de te ver. Invades-me a mente de forma súbita e desordenada, pequenos episódios em flash atravessam-me o olhar; gargalhadas soltas, toques demorados, mãos entrelaçadas, olhos sorridentes, silêncios cúmplices, abraços-cola, gemidos suspensos a antecipar o êxtase. Respiro fundo, tentando regressar à realidade, e abano a cabeça como quem afasta um pensamento perigoso.

Eva observa por cima do meu ombro, cúmplice, quase triunfante. Petra já não ocupa o seu lugar. Quando me viro, vejo-a a sacudir a neve do teu casaco, ainda húmido do frio da serra, e, logo depois, reencontro os teus olhos sorridentes, quentes em contraste com a noite lá fora.

Compreendo então que a tradição do agora não se constrói sobre promessas longas nem sobre a ilusão da permanência, mas sobre a intensidade da presença. Sentares-te no chão connosco, partilhares o calor da lareira, o peso das mantas, o sabor adocicado do hidromel, enquanto a neve continua a cair sobre o vale, indiferente.


Não prometes ficar. Eu não te peço que fiques. Permanecemos apenas o tempo exacto que o instante nos permite, como filhos perdidos e livres numa noite aconchegante de inverno.



quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Wonderland


(Eu) sou a Alice.

Sou feita de intensidade indomada e lucidez a mais. Penso demais, sinto antes do tempo, antecipo a dor como quem monta guarda à porta da perda. Não espero que me deixem. Quando começo a perceber o silêncio, já estou a fechar a porta por dentro. Chamo-lhe autonomia. No fundo, é cautela com boa dicção.


Sou lúcida ao ponto de me doer. Vejo padrões, leio entrelinhas, detecto microfugas emocionais como quem fareja incêndios antes do fumo. Isso não me salva. Só me torna consciente enquanto ardo.


Tenho paixão em excesso e recipientes a menos. Quando gosto, não gosto com prudência. Gosto com os dentes, com o peito aberto, com a urgência de quem sabe que tudo pode acabar de repente. E quase sempre acaba. Não porque não fosse real, mas porque a minha fome assusta quem só vinha provar.


Carrego uma loucura funcional. Trabalho, crio, cuido, penso, decido. Por fora, sou organizada. Por dentro, há um carnaval silencioso. Uma mente que não desliga, emoções que não pedem licença, uma criança que percebeu cedo que amar exige coragem e que depender implica risco.


Sou independente. Apesar de tudo, não necessito de ninguém. Quando fecho a porta, por mais mágoa que sinta, não é pela ausência do outro. É pela rara constatação de que não há, no mundo, alguém com o mesmo grau de loucura capaz de me compreender verdadeiramente.


Habito um palácio erguido na serra. Não é feito de ouro nem de aplausos, mas de silêncio, altura e ar rarefeito. Para lá chegar é preciso perder-se. E eu perco-me muitas vezes. Na serra, encontro-me. No isolamento, organizo o caos. O mundo fica distante, pequeno, quase irrelevante.


Os aldeões observam-me de baixo, sempre com um misto de espanto e receio. Não sabem se desço para ficar ou se volto a desaparecer entre as árvores. Não me pertencem e eu não lhes pertenço. Sou a figura que passa e deixa rasto, nunca permanência.


Os meus cabelos dourados soltos ao vento são tão indomáveis quanto eu. Não obedecem, não assentam, não pedem permissão. A minha pele é cálida como mármore frio. Aproxima-se quem quer, mas poucos permanecem. O toque raramente alcança o que está por baixo.


Mesmo acompanhada, conheço a solitude da loucura. Há quem veja o invólucro, quem admire a forma, quem se encante com a superfície. Poucos suportam a profundidade. Poucos escutam o eco.


Sou cansada. Mas não vencida. Frágil, mas atenta. Capaz de amar com uma profundidade que mete medo, inclusive a mim.


E continuo aqui.
Mesmo com tudo isto.
Talvez precisamente por tudo isto.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Lingering

 


Luto e saudade.


Não como fins, mas como movimentos lentos do pensamento quando, sem aviso, me atravessas.

Pensei em escrever-te. Não por urgência. Por reconhecimento. Ainda assim, contive o gesto. Há silêncios que não são ausência, são intervalo.

Do que foi intenso ao que se tornou atento, do descompasso à escuta, houve um percurso que não se desfez. Apenas mudou de forma. E talvez por isso permaneças. Não como falta, mas como linha ténue que nunca se apaga por completo.

Em certos lugares, a tua voz regressa sem esforço, quase intacta. No quotidiano, a memória assenta com uma delicadeza pesada. Não lhe chamo luto, nem lhe nego a saudade. É outra coisa. Um estado intermédio, onde nada está fechado.

Pergunto-me, às vezes, se ainda me encontras nesse espaço indefinido entre o que se viveu e o que não chegou a acontecer. Se continuo legível, mesmo quando não escrevo.


Talvez sim.

Talvez ainda.


Luto e saudade.


terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Thaw


Há criaturas humanas dotadas de uma habilidade rara e quase alquímica: a de dissolver armaduras interiores forjadas em aço temperado pela sobrevivência. Por mais glacial que eu me torne, hermética como uma noite de inverno em fúria marítima, existe sempre alguém capaz de me desarmar com a simplicidade devastadora de um primeiro raio de sol após a tempestade.

Desperto com a claridade inaugural da madrugada. A luz ainda tímida infiltra-se como um segredo mal guardado. A neblina permanece suspensa no topo da serra, densa e silenciosa, enquanto as copas das árvores se revelam aos poucos, imobilizadas numa composição pictórica de outro século, como se um pintor melancólico tivesse escolhido óleos de paleta fria para retratar este Outono tardio e gélido. Do lado oposto, irrompe o astro-rei, impaciente e soberano, derramando uma luz dourada, quase insolente, que rasga a névoa sem pedir licença, aquecendo o ar com promessas de permanência e acordando a paisagem de um torpor antigo.

Sinto a pele eriçar-se apenas pelo frio. Envolvo-me numa túnica de malha espessa, leitosa, quase lunar, numa tentativa vã de reter o calor. Ainda assim, desço as escadas de pernas nuas e pés descalços, entregando-me com prazer à frieza implacável do mármore, cúmplice antiga das minhas manhãs.

Esperas-me na cozinha. Empunhas uma caneca fumegante como quem segura um pequeno ritual doméstico. O líquido negro exala um aroma denso, profundo, quase ancestral. Sorrio-te. Sabes que as manhãs me roubam as palavras e devolvem-me apenas gestos. Aproximo-me em silêncio, retiro-te as canecas das mãos com a naturalidade de quem já pertence, e deixo-me cair no teu abraço. Os meus lábios encontram os teus num beijo lento, ainda impregnado de sono e promessas tácitas.

Ficas ali, imóvel, como se compreendesses que aquele instante não deve ser apressado. As tuas mãos ancoram-me à realidade enquanto o mundo, lá fora, continua a acordar. O calor do teu corpo infiltra-se por baixo da lã grossa, dissolvendo o frio, desfazendo a distância, silenciando o ruído interior. É nesse espaço suspenso, entre o primeiro café e a primeira palavra, que a minha armadura cede sem resistência, rendida não à força, mas à presença.

Há criaturas humanas dotadas de uma habilidade rara e quase alquímica: a de dissolver armaduras interiores forjadas em aço temperado pela sobrevivência. Por mais glacial que eu me torne, existe sempre alguém capaz de me desarmar com a inevitabilidade luminosa de um sol que regressa.


quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Aftermath

 


Há pessoas que chegam como tempestades ensaiadas, com aquela luz enganadora que faz acreditar que finalmente encontramos alguém que nos lê por dentro. Tu eras isso: um clarão aparente, inteligente, ruidoso na medida que seduzia, frágil na medida que mascaravas. Um daqueles seres que parecem segurar o mundo com uma mão até o mundo lhes pedir que o agarrem com verdade.

A afinidade era quase absurda, uma ligação que prometia incêndios e estradas longas. Prometia tudo. Até chegar a hora de cumprir. Foi aí que te desmontaste.

Bastou um contacto mais próximo, um toque de realidade, e o encanto dissipou-se como perfume barato na estação estival. Não houve lentidão, nem coerência. Houve ruptura. Seca. Brutal. Uma viragem tão abrupta que quase fez vento. Primeiro surgiram justificações polidas, frágeis como papel molhado. Depois… o teu teatro, de quem não suporta sustentar as próprias palavras.

Há desaparecimentos silenciosos, dignos. E há o outro tipo. O que precisa de palco, luz e plateia para maquilhar a fuga. Tu escolheste esse. Converteste a retirada numa performance inquieta, feita de gestos estudados e aproximações meticulosas a quem sabes que para mim é intocável. Achavas mesmo que eu não perceberia? Movimentos frios, quase coreográficos, revelando não leveza, mas pânico mascarado. Conversas exibidas como medalhas ocas, presenças lançadas como areia ao vento, tudo milimetricamente calculado para diluir a culpa e ocultar a incoerência. Uma encenação pobre, mas funcional para quem precisa de espectáculo para suportar a própria incapacidade de ficar.

E eu vi tudo. Cada desvio. Cada oscilação. Cada tentativa infantil de provar que estavas “bem”, “ocupado”, “acima”. Muitos acreditam que manipular é arte; em ti era apenas medo com verniz brilhante. Estalado.

É extraordinário como aquilo que parecia profundo se revela raso com um único feixe de verdade. Como alguém que parecia inteiro afinal não era mais do que sombra projectada em parede fina. Como quem prometeu intensidade afinal não suportou o calor que encontrou. Almas gémeas, disseste-me outrora. Patético.

E sim, há vestígios. Aquilo que eliminavas quase no imediato, está aqui, guardado no meu armário mais antigo, entre papéis sem cheiro e memórias que já não ardem. Não são armas. São testemunhos. Fragmentos de um capítulo que não nego porque me ensinou mais do que suportarias saber. E se algum dia tentares redesenhar esta estória para teu proveito, esses fragmentos sabem erguer-se do pó. A verdade tem uma obstinação notável.

Não te odeio. Nem te desejo. Não te quero perto nem longe. Tornaste-te irrelevante quando me mostraste que só sabes viver em modo rascunho. Apenas te vejo como sempre foste: alguém que se aproximou do fogo, achou bonito, mas não teve mãos para o segurar.

E, no fundo, foi isso que me salvou.

Porque não fui eu que perdi alguém. Foste tu que encontraste alguém que te viu inteiro… e não suportaste o reflexo.

Não escrevo isto para ferir. Escrevo para lembrar-te que, comigo, nada volta atrás.

Nunca.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Demons



Não fujo das minhas sombras. Já tentei. Já lhes virei as costas vezes suficientes para saber que, quando o faço, elas crescem. E então aprendi a dançar com elas ou, pelo menos, a não tropeçar demasiado no seu passo irregular.


Voltei a falar do que dói. Daquilo que me fica preso entre a garganta e o estômago. Abri-te aquela porta para que conhecesses os meus cantos mais frágeis, deixei-te entrar onde quase ninguém entra. Confiei-te aquilo que me causa uma ferida aberta e, sem sequer arrefecer, já te sentia com a lâmina fria a dilacerar-me.


O que me rasga não é a mudança. É fingires que não estava a acontecer. Esse teatro mal ensaiado de quem jura que está igual quando tudo em ti gritou o contrário. Logo ali, no dia seguinte. Tão evidente, tão desajeitado, que quase me pergunto se achas que sou cega. Ou estúpida. Ou ambas. A tua tentativa de disfarçar… anedótico. 


Não tiveste sequer coragem de assumir o que estavas a fazer. Esse recuo tímido, esse desaparecimento sorrateiro, como se esconderes as pegadas apagasse o caminho. Fica-me sempre este gosto amargo de voltar a confiar em pessoas parcas em maturidade, que se recusam a ser inteiras. 


Já os meus demónios não mentem, não fogem, não se envergonham de existir. Mostram-me as falhas, exibem as fissuras, rasgam-me onde for preciso, mas fazem-no com uma honestidade brutal (a única coisa que te pedi), quase misericordiosa. E, no meio desse caos íntimo, há mais verdade nos monstros que carrego do que em pessoas que juram tocar-me com cuidado.


Por isso danço com eles. Porque ao menos, no escuro, ninguém finge que é luz.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Drift


Algo mudou. E quando algo muda, perco o chão. Quando estranho, retraio-me. E quando me retraio, fujo.

Ou talvez tenha sido eu a mudar. Talvez sejam as diferenças entre nós, tão gritantes que não consigo fingir que não as vejo. Sei que nada disto me pesaria tanto se falássemos frente a frente, ou voz com voz, se houvesse mais presença do que esta troca quase só escrita e agora, até isso, rarefeita.

Não sei se és tu. Não sei se sou eu. Mas algo mudou. E eu reconheço bem quando a minha intuição se inquieta.

As peças não encaixam. Falta coerência. Falta sentido. E eu, mais uma vez, caio na velha armadilha de esperar demasiado onde talvez nunca tivesse havido espaço para esperar coisa alguma.

Não entendo esta viragem. Procurei a intensidade do nosso contacto, aquela impulsionada pelo toque, pelo corpo, pelo início que parecia promissor. Mas o que recebi foi frieza. Um afastamento que até me antecipaste, mas que não imaginei que surgisse tão cedo, nem desta forma.

ainda algo que não sei como encaixar, mas que não quero esconder. Tenho um presente para esta época festiva. Algo simples, mas pensado por mim. Gostava de to entregar em mãos, embora nem saiba como, nem quando, nem sequer se o queres.

Sinto falta da sinceridade crua. Falta das provocações que nos incendiavam. Dizes que nada mudou, que nunca disseste tal coisa, mas.

Algo mudou. E quando algo muda, perco o chão. Quando estranho, retraio-me. E quando me retraio, fujo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Yearn

 


Toca e foge. Aproximação e recuo. Um jogo que me deixa à beira do colapso, como um rastilho aceso a correr depressa demais para o meu próprio corpo conseguir acompanhar.

E agora? O que faço comigo? Contigo? Connosco? Mal me afasto e já a tua ausência se infiltra na pele como fome antiga. Quero mais. Quero o teu toque a marcar território, a tua mão firme a puxar-me para a parede, o teu corpo a empurrar o meu como quem decide que acabou o jogo. Quero-te atrás de mim, a morder-me o pescoço enquanto o fecho do vestido cede às tuas intenções. Quero que me voltes a virar para ti, que deixes o vestido cair sem cerimónia, que me contemples em lingerie negra e meias de liga como se fosse uma provocação feita à tua medida. Quero o teu sussurro quente no meu ouvido a admitir que já não consegues adiar aquilo que te devora.

E agora? O que faço comigo? Contigo? Connosco? Toca e foge. Aproximação e recuo. 

Estou em chamas e não encontro forma de me apagar.


sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Tension


 

O que temos em comum? Quase nada. Vidas em mapas distintos, idades desalinhadas, gostos que não se tocam. E, ainda assim, há este magnetismo estranho, uma força que não pedi mas que insiste em manter-nos ligados.

Futuro? Nenhum. Vontade? Toda. A minha, sem disfarces. A tua… só tu e Deus é que lá têm acesso.

O jogo é sempre o mesmo. Tocamos e fugimos, os dois. Aproximação, recuo, provocação, silêncio. Talvez seja isso que me alimenta, este desejo que cresce precisamente por não ter terreno para pousar. Ou será que tem? Quem é que acaba por ceder neste jogo adulto? Nós, que fingimos que não é nada? Ou nós, que continuamos a voltar?


quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Unclaimed

 


Detesto-te. Tornaste-te em tudo aquilo que nunca foste para mim: descartável. Deixei de recordar as nossas memórias com saudade; já nada há de prazeroso a lembrar.


Miragem. Um efeito visual de algo que afinal não está ali, ou que nunca foi o que parecia.


Não consigo, nem quero, encaixar-me no molde que desenhaste para nós. As minhas asas são demasiado largas para a mesquinhez com que agora me tentas tratar.

És um pacote bonito e bem vestido, até bem falante, mas de alma oca, vazia.


Sabe-me bem dizer-te não.

Sabe-me bem recusar-te.

Sabe-me bem apontar-te a porta do meu palácio enquanto deixo a tua gabardina cair aos teus pés.


E sabes porquê?

Porque eu sou mais do que o teu atalho para noites apressadas. Sou pele, sim, mas também mente, história, cicatrizes, vontade, critério, mundo próprio e uma verdade que não se vende ao primeiro gesto fácil.

Sou intensidade que não se serve em copos descartáveis.

Sou presença que exige profundidade, que pede raízes, que não se satisfaz com restos disfarçados de desejo.


Eu sou tudo o que tu nunca tiveste capacidade de alcançar, e exatamente por isso é tão simples fechar-te a porta.


sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Ache

 


Hoje a mágoa regressou com a precisão cruel de algo que sabe exatamente onde me encontrar. Liguei a música na Back to Black e as lágrimas correram livres, negras, tão negras quanto o meu semblante cansado.


Deixei passar o teu aniversário. Não por esquecimento, porque ainda sei a data de cor, mas porque a forma como nos despedimos foi demasiado fria, demasiado cortante, impossível de atravessar sem voltar a sangrar por dentro. E, sendo honesta comigo, nunca chegaste a evidenciar o meu.


Volto ao teu último contacto e às palavras que nada diziam, como quase sempre. A data, porém, ficou gravada. Porquê, R? Que lógica secreta seguiste naquela escolha?


Recebi um convite da minha editora para assistir a uma palestra. O orador tinha o teu nome. R. Talvez tenha sido esse detalhe, tão pequeno e tão feroz, que abriu de novo o peito e libertou este aperto que me interroga por dentro. Foi como recordar o momento em que desligaste, sem aviso, o suporte básico de vida do meu emocional.


Sinto tanto a tua falta. É uma ausência palpável e, ao mesmo tempo, impossível de agarrar. Escapa-se-me sempre que tento tocar-lhe. Perdemo-nos de vez ou apenas nos deixámos cair por exaustão?


A tua voz continua a morar em mim. A musicalidade dela. O modo como preenchia o silêncio. Ainda te procuro sob a copa das árvores; desligo a música assim que entro na floresta e fico atenta, como se pudesse ouvir a tua gargalhada a abrir caminho entre os ramos. Mas ela só ecoa dentro da minha mente.


Onde estás? Volta para mim. 

Convergence

 



Oiço a chuva cair lá fora…

… e suspiro. São duzentos quilómetros a separar-nos e, agora, um silêncio ensurdecedor que se instalou desde a tarde. Onde estás?


Releio as palavras que trocámos, procurando nelas uma pista, uma fresta mínima que explique o teu afastamento.


Escuto o portão do meu palácio fechar. Talvez seja a Petra, embora nada nela se faça sentir. Desço a escadaria para ver quem me aguarda na sala, indiferente ao facto de estar apenas com a túnica e o robe de seda negros, os pés nus sobre o mármore gelado.


Entro e detenho-me à porta. Reconheço-te pelo vulto, pelo silêncio denso que trazes contigo. Estás de costas, a servir-te de algo que me parece vodka. Bebes de um só gole, tenso, como se o líquido pudesse dissolver o que não consegues dizer.


Nunca te tinha visto ao vivo. Avanço em silêncio, pé ante pé, movida por uma curiosidade antiga, quase febril, de te tocar.


Aproximo-me de ti. Sinto o teu cheiro e denuncio a minha presença ao inspirar profundamente. É estranho e fascinante quando a ínfima possibilidade de o imaginário coincidir com a realidade se concretiza. O teu cheiro é exactamente como o imaginei. Fico imóvel, de olhos fechados, a absorver esse instante suspenso, até sentires a minha respiração e te virares para me encarar.


Vejo a surpresa no teu rosto. Entreabes os lábios, mas o silêncio permanece. O teu olhar percorre-me lentamente, do rosto aos pés, como se cada centímetro do meu corpo fosse uma revelação. O dedo indicador direito acompanha esse trajecto invisível, mapeando-me com uma precisão quase cerimonial, até regressar ao ponto de partida, aos meus olhos, onde o teu olhar se prende e já não me larga.


Sorrio ligeiramente, o peito aos pulos do meu batimento cardíaco descontrolado. Não me passou pela cabeça que fosses capaz de vir ao meu encontro sem que eu desse por isso.


Passo o polegar direito pelos teus lábios, pela tua sobrancelha, encaixando a minha mão no teu rosto e pergunto-me o que terás visto em mim que te tenha trazido aqui.


Olho para ti, sem te permitir falar. A tua voz conheço. Era o único factor que conhecia. Não, não quero ouvir a tua voz. Agora quero explorar tudo o resto. A tua respiração, as expressões do teu rosto diante das minhas ações, o teu toque na minha pele, as minhas mãos frias a causarem-te arrepios.


E começo. Com calma. Com tempo. Passo a minha língua quente sobre os teus lábios e sinto-te estremecer. Pego na tua mão e puxo-te para me seguires escada acima. Levo-te à casa de banho da suite, onde já tinha preparado o jacuzzi, mesmo sem imaginar que virias.

A minha pele arrepia-se, revelando o meu peito solto sob a túnica de dormir; se de frio ou de antecipação, não sei responder.


Continuamos em silêncio, comunicando apenas com o olhar e sorrisos nervosos, enquanto dispo o robe e deixo as alças da túnica deslizarem, até que o tecido cai a meus pés. Estou nua, nada mais tenho a revelar-te antes de voltar a ligar o jacuzzi e o seu ruído se tornar a nossa banda sonora.


Segues os meus passos e entras neste leito quente e borbulhante. O vapor paira no ar, embora a nossa pele se mantenha arrepiada. Olhas-me, num convite silencioso para me juntar a ti. Entro. Dirijo-me ao teu colo ergonómico e encaixo-me em ti como se fôssemos duas peças de Lego. A tua respiração suspende-se, a minha transforma-se num arfar profundo à medida que me fundo contigo. Sinto as tuas mãos nas minhas nádegas enquanto me trincas o pescoço e iniciamos um bailado ritmado, compassado, até me sentires contrair-te num abraço interno que te faz chegar ao clímax.


Ambos sabíamos que seria assim. Curto, mas intenso. Silencioso, sem espaço para a racionalidade que insiste em escapar-nos.


Oiço a chuva cair lá fora e suspiro. Eram duzentos quilómetros a separar-nos e, agora, num silêncio ensurdecedor de olhares intensos e sorrisos constrangidos que se instalou entre nós, estás aqui.

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