sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Ache

 


Hoje a mágoa regressou com a precisão cruel de algo que sabe exatamente onde me encontrar. Liguei a música na Back to Black e as lágrimas correram livres, negras, tão negras quanto o meu semblante cansado.


Deixei passar o teu aniversário. Não por esquecimento, porque ainda sei a data de cor, mas porque a forma como nos despedimos foi demasiado fria, demasiado cortante, impossível de atravessar sem voltar a sangrar por dentro. E, sendo honesta comigo, nunca chegaste a evidenciar o meu.


Volto ao teu último contacto e às palavras que nada diziam, como quase sempre. A data, porém, ficou gravada. Porquê, R? Que lógica secreta seguiste naquela escolha?


Recebi um convite da minha editora para assistir a uma palestra. O orador tinha o teu nome. R. Talvez tenha sido esse detalhe, tão pequeno e tão feroz, que abriu de novo o peito e libertou este aperto que me interroga por dentro. Foi como recordar o momento em que desligaste, sem aviso, o suporte básico de vida do meu emocional.


Sinto tanto a tua falta. É uma ausência palpável e, ao mesmo tempo, impossível de agarrar. Escapa-se-me sempre que tento tocar-lhe. Perdemo-nos de vez ou apenas nos deixámos cair por exaustão?


A tua voz continua a morar em mim. A musicalidade dela. O modo como preenchia o silêncio. Ainda te procuro sob a copa das árvores; desligo a música assim que entro na floresta e fico atenta, como se pudesse ouvir a tua gargalhada a abrir caminho entre os ramos. Mas ela só ecoa dentro da minha mente.


Onde estás? Volta para mim. 

Convergence

 



Oiço a chuva cair lá fora…

… e suspiro. São duzentos quilómetros a separar-nos e, agora, um silêncio ensurdecedor que se instalou desde a tarde. Onde estás?


Releio as palavras que trocámos, procurando nelas uma pista, uma fresta mínima que explique o teu afastamento.


Escuto o portão do meu palácio fechar. Talvez seja a Petra, embora nada nela se faça sentir. Desço a escadaria para ver quem me aguarda na sala, indiferente ao facto de estar apenas com a túnica e o robe de seda negros, os pés nus sobre o mármore gelado.


Entro e detenho-me à porta. Reconheço-te pelo vulto, pelo silêncio denso que trazes contigo. Estás de costas, a servir-te de algo que me parece vodka. Bebes de um só gole, tenso, como se o líquido pudesse dissolver o que não consegues dizer.


Nunca te tinha visto ao vivo. Avanço em silêncio, pé ante pé, movida por uma curiosidade antiga, quase febril, de te tocar.


Aproximo-me de ti. Sinto o teu cheiro e denuncio a minha presença ao inspirar profundamente. É estranho e fascinante quando a ínfima possibilidade de o imaginário coincidir com a realidade se concretiza. O teu cheiro é exactamente como o imaginei. Fico imóvel, de olhos fechados, a absorver esse instante suspenso, até sentires a minha respiração e te virares para me encarar.


Vejo a surpresa no teu rosto. Entreabes os lábios, mas o silêncio permanece. O teu olhar percorre-me lentamente, do rosto aos pés, como se cada centímetro do meu corpo fosse uma revelação. O dedo indicador direito acompanha esse trajecto invisível, mapeando-me com uma precisão quase cerimonial, até regressar ao ponto de partida, aos meus olhos, onde o teu olhar se prende e já não me larga.


Sorrio ligeiramente, o peito aos pulos do meu batimento cardíaco descontrolado. Não me passou pela cabeça que fosses capaz de vir ao meu encontro sem que eu desse por isso.


Passo o polegar direito pelos teus lábios, pela tua sobrancelha, encaixando a minha mão no teu rosto e pergunto-me o que terás visto em mim que te tenha trazido aqui.


Olho para ti, sem te permitir falar. A tua voz conheço. Era o único factor que conhecia. Não, não quero ouvir a tua voz. Agora quero explorar tudo o resto. A tua respiração, as expressões do teu rosto diante das minhas ações, o teu toque na minha pele, as minhas mãos frias a causarem-te arrepios.


E começo. Com calma. Com tempo. Passo a minha língua quente sobre os teus lábios e sinto-te estremecer. Pego na tua mão e puxo-te para me seguires escada acima. Levo-te à casa de banho da suite, onde já tinha preparado o jacuzzi, mesmo sem imaginar que virias.

A minha pele arrepia-se, revelando o meu peito solto sob a túnica de dormir; se de frio ou de antecipação, não sei responder.


Continuamos em silêncio, comunicando apenas com o olhar e sorrisos nervosos, enquanto dispo o robe e deixo as alças da túnica deslizarem, até que o tecido cai a meus pés. Estou nua, nada mais tenho a revelar-te antes de voltar a ligar o jacuzzi e o seu ruído se tornar a nossa banda sonora.


Segues os meus passos e entras neste leito quente e borbulhante. O vapor paira no ar, embora a nossa pele se mantenha arrepiada. Olhas-me, num convite silencioso para me juntar a ti. Entro. Dirijo-me ao teu colo ergonómico e encaixo-me em ti como se fôssemos duas peças de Lego. A tua respiração suspende-se, a minha transforma-se num arfar profundo à medida que me fundo contigo. Sinto as tuas mãos nas minhas nádegas enquanto me trincas o pescoço e iniciamos um bailado ritmado, compassado, até me sentires contrair-te num abraço interno que te faz chegar ao clímax.


Ambos sabíamos que seria assim. Curto, mas intenso. Silencioso, sem espaço para a racionalidade que insiste em escapar-nos.


Oiço a chuva cair lá fora e suspiro. Eram duzentos quilómetros a separar-nos e, agora, num silêncio ensurdecedor de olhares intensos e sorrisos constrangidos que se instalou entre nós, estás aqui.

domingo, 28 de setembro de 2025

Hollow

 


Série “O Arquitecto”. A cada episódio, reconheço-te no reflexo distorcido dos gestos, na música subterrânea das frases. O tempo passa, as máscaras mudam, mas o traço persiste: és sempre tu, o eixo da tua própria órbita. Há um altar secreto onde o único deus és tu, e a única devoção é a que te ofereces.

O teu discurso de “amor louco” era uma peça de teatro que encenavas para mim e para ti próprio. Eu, ingénua e faminta de ternura, quase acreditava no mito. Tu também. Mas era apenas mais um acto do teu labirinto narcísico, onde seduzir é um mecanismo de sobrevivência e manipular é o único verbo que conjugas sem esforço.

Hoje, depois de uma década a aprender as cicatrizes das tuas mãos, leio-me de outra forma. Como amei. Como me fui diluindo na ilusão de ser escolhida, mesmo sendo “a outra”. Como me anulei, mulher de sombra, arrumada às sobras da tua vida oficial. A minha auto-estima rastejava pelo subsolo, o meu amor-próprio não tinha nome.

Agora sei o meu valor. Carrego o meu próprio respeito como quem carrega uma luz nova. Olho para a jovem que fui: frágil, órfã de validações, viciada em migalhas. Olho para ti: não um homem maior do que a vida, mas um eco, um espelho rachado, uma caixa vazia. Narcisismo, manipulação, egoísmo; não troféus, mas sintomas de ausência: de empatia, de valores, de substância.


Amei-te até à exaustão. Submeti-me até à mudez. E agora, olhando para trás, percebo: não eras um enigma. Eras apenas o meu próprio deserto, espelhado.


sábado, 20 de setembro de 2025

Echoes


 Amanhece envolto numa neblina que cobre a minha serra. O ar traz o cheiro da terra molhada, herança da chuva intensa que caiu na madrugada, ruidosa, acompanhada de clarões que rasgavam o céu por instantes breves, como se o mundo respirasse em relâmpagos. Gosto da trovoada. Dessa força selvagem da natureza, capaz de gerar tantas formas de energia, que nos reduz a quase nada, fragmentos minúsculos neste planeta imenso.


Não dormi muito. Fiquei à janela do meu quarto, a observar os poucos aldeões que corriam apavorados pelas vielas, fugindo da tempestade como se pudessem escapar-lhe. Vi os riachos nascerem no caminho do palácio para sul, correndo livres, indomáveis.


E então chegaste. Invadiste-me o pensamento. Tenho sempre essa tendência de me lembrar de ti quando o ar arrefece. Sorrio. Já não guardo mágoa. As coisas são o que são. Recordo as gargalhadas, as provocações, a curiosidade incessante, o querer ouvir-te sempre mais. Tenho tantas saudades da tua voz, essa voz musical que ainda ressoa em mim, embora a memória dela se vá dissolvendo. Lembro o toque que nunca tive, o desejo suspenso de sentir-te na pele. Lembro o teu fascínio pelos recantos escondidos da minha serra, onde cabem segredos de paixões vividas à pressa, cruas, com cheiro a terra molhada, pele húmida de orvalho, corpos quentes e respirações cortadas.


Adormeci assim, encostada à janela, mergulhada em lembranças, sonhos e desejos, enquanto a tempestade me embalava num espetáculo de luz, estrondos e chuva. E acordei dorida, a espreguiçar-me nos primeiros raios de sol, com o cheiro da terra húmida a encher-me o peito, e com a sensação inquietante de não estar só dentro do meu próprio pensamento.


Estiveste aqui? Sinto o teu cheiro. Procuro-te. Não te encontro. Onde te escondes?

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Crave


Fazes-me lembrar aquele actor de semblante galante, sorriso milimetricamente perfeito e simpatia que transborda no olhar. A tua voz, quase em sussurro, escapa-te com naturalidade, enquanto ris discretamente com os olhos em cada tema partilhado. O contraste surge quando a conversa resvala para territórios menos luminosos: o teu olhar tolda-se, adquire peso, como se carregasse o fardo de um silêncio antigo.


Estás na posição certa, não estás? A tua simpatia corre-te no sangue, fluindo como um rio obediente em direcção ao mar.

És intenso, tão intenso quanto eu. Não hesitas em sustentar o meu olhar, como se ambos procurássemos, na profundidade alheia, decifrar segredos e paixões soterradas.


Cheguei tarde. A consulta contigo prolonga-se enquanto os teus colegas se vão retirando, um a um, com despedidas fugidias até ao dia seguinte. Ficamos sozinhos. Pedes-me licença para baixar persianas e grades, enquanto me desfaço em desculpas, quase suplicantes:


— Perdoe-me o atraso. O trânsito engoliu-me e foi impossível chegar mais cedo. Odeio atrasos! Posso regressar amanhã, em hora decente… não quero incomodar.


Sorris apenas com os olhos, inescrutável, enquanto continuas a encerrar o espaço. E, finalmente, quando me encaras, o sorriso permanece:


— Estou aqui para servi-la da melhor forma possível, e assim será. Não se preocupe: ninguém aguarda a minha chegada. — voltas ao balcão, mas do meu lado, demasiado próximo. — Continuamos?


A proximidade é tal que sinto a tua respiração quente no meu pescoço. Manténs a postura profissional, mostras artigos, prós e contras, valores e opções de cores… mas sempre perto, perigosamente perto, roçando a provocação, quase murmurando-me ao ouvido.


Estremeço. Tu sorris. E, num gesto abrupto, as tuas mãos cercam o meu rosto, olhos cravados nos meus, antes do sussurro:


— Prometi servi-la da melhor forma. Não sei se será a melhor, mas é impossível não tentar.


O beijo acontece: denso, arrebatado, um abraço que é turbilhão.

Logo a seguir, a tua voz ainda colada ao meu ouvido:


— Há tanto tempo que desejava isto, Alice.


A minha resposta foi puxar-te contra mim. Botões voaram da tua bata, as minhas pernas enlaçaram-te, mãos famintas a caminho da fivela do teu cinto, olhos nos olhos, num compasso voraz.


— E a câmara da loja? — ainda consigo perguntar.

— Desliguei-a, mal entraste.


Essa resposta foi o gatilho para a partida. O tempo deixou de existir. O meu corpo reconheceu o teu como se nos tivéssemos encontrado noutra vida: respirações em uníssono, movimentos contínuos, magistralmente alinhados, até que qualquer resquício de pudor se dissolveu no abandono absoluto.


Partimos juntos. Chegámos juntos. O êxtase deu lugar a um sorriso cúmplice, ternamente polvilhado de toques breves.


— E agora? — ousas perguntar.

— Agora? Pago o que vim buscar… e vamos jantar. — sorrio, roubando-te mais um beijo.

— Combinado. Mas o vinho escolho eu.


O teu sorriso, esse sorriso de galã, ilumina a desordem da loja: roupas espalhadas, cabelos desalinhados, o cenário perfeito de um desvario memorável.


domingo, 17 de agosto de 2025

Farewells



Já reparaste que nascemos a despedirmo-nos? A vida inteira é uma cadência de partidas, um fio contínuo de pequenas e grandes rupturas. Ao nascer, despedimo-nos do ventre que foi abrigo quente e silencioso. Depois, somos obrigados a afastar-nos dos pais para ingressar num infantário qualquer, onde o desconhecido se torna rotina. Crescemos e deixamos para trás a chucha, essa pacificadora ingénua de angústias, mas não só: despedimo-nos também daquela figura cuidadora que nos amparava quando o pai e a mãe não estavam, para avançarmos rumo à pré-escola.


E a cada etapa a vida insiste em acrescentar experiências ao mesmo tempo que subtrai presenças. Despedimo-nos da última educadora para enfrentar a gravidade da professora primária. Mais tarde, despedimo-nos dela também, que nos guiou com paciência nas letras e nos números, para mergulharmos num oceano de professores desconhecidos. Despedimo-nos ainda de amigos que imaginávamos eternos, mas que se perderam em mudanças de residência, em silêncios irreversíveis, em personalidades que, outrora tão paralelas, se tornaram progressivamente dissonantes.


Na vida adulta, a coreografia das despedidas mantém-se implacável. Dizemos adeus às reuniões familiares, outrora tão numerosas quanto estrondosas, até que o barulho se dissolve em memórias. Despedimo-nos daquela avó que era tudo, despedimo-nos dos pais ao fechar a porta daquela que foi a nossa casa, para que a mesma chave passe a abrir apenas o nosso palácio solitário. Despedimo-nos do primeiro grande amor, aquele que era para sempre, mas que ficou suspenso, inacabado, quase sepultado em silêncio.


E mesmo no envelhecimento, a despedida continua a ser companheira. Perdemos, gota a gota, a saúde. Perdemos a elasticidade do corpo, a paciência para noitadas, sejam elas de trabalho árduo ou de lazer efémero.


É verdade que também ganhamos. Cada experiência, por mais corrosiva que seja, deixa sempre um resquício enriquecedor. Mas neste instante eu sinto-me quebrada, cansada de despedidas, farta de me despir continuamente de afectos e presenças. Não quero mais afastar-me. Quero permanecer. Quero-me aqui, inteira.


House & Home. Casa & Lar. Duas palavras quase gémeas, mas tão distantes na essência. Chega de rejeição. Chega de trauma. Quero-me aqui, contigo, como tem de ser. Chega de tempestades. Quero-te aqui, comigo, como deve ser.


quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Anchor

 

A tua presença, antes pacífica e segura, cutuca-me agora, criando um desassossego tal que a trepidação faz abrir as portas daquele armário sombrio e empoeirado, esquecido no sótão da minha alma.

Mas não és propriamente tu. São os meus fantasmas.

Tentam minar-me. Transpõem para o presente memórias passadas de dor, rejeição, mágoa, desdém. Vestem-te com os trapos dos outros. Fazem-me desconfiar de ti com olhos que não são meus — são olhos antigos, partidos, vindos de um tempo onde amar era perigoso.

Estou assim: sentada no sótão, arrasada emocionalmente, com os meus fantasmas a rasgarem-me as vestes e a pregarem-me ao chão…

…quando sinto a Petra entrar de rompante, não pela porta do sótão, mas pela entrada principal do palácio, com um estrondo.

No meio da minha auto infligida mágoa, o meu lado racional preocupa-se com os aldeões — sempre tão assustados com ela em calma, quanto mais em tempestade.

Mas não preciso dizer-lhe onde estou.

A Petra sente-me. Conecta-se ao meu tumulto interior como um cão a farejar a perdiz caída com um chumbo de pólvora.

Chega até mim, furiosa de lucidez, agarra-me pelos ombros, e abana-me com força:


— O que estás a fazer contigo, Alice?! Pára! Um pontão é um porto seguro. A tua ancoragem. Pára de ceder ao trauma!


Depois olha em redor, com aqueles olhos verdes tão intensos que quase fazem esfumar os fantasmas. E por um instante, volto. Ao presente. À razão. Exausta, mas lúcida.

E quando dou por mim, estou na cozinha.

O ar perfumado de café.

A Petra corta tiras finas de maçã verde como tanto gosto. Sorri-me finalmente, sem grande doçura, mas com a ternura de quem está. De quem fica.


— Se te voltares a perder, volto para estarmos juntas aqui. Mas por agora, Alice… simplesmente fica.


quarta-feira, 30 de julho de 2025

Yield


Cedi.

No âmago da minha mágoa, neste silêncio ensurdecedor que se impôs entre nós, cedi.


Num dos raros instantes em que me deixo ficar diante da televisão, ouvi uma notícia sobre as dificuldades da tua profissão estival. A culpa é tua. Onde estás?

Sinto-te em falta como quem sente a ausência de uma estação inteira.


Cedi.

Sob o risco iminente de me estilhaçar ainda mais, cedi.


E foi então que me elevei.

Regressaste a mim como se o tempo se tivesse curvado em reverência ao que fomos.

Não te esqueceste de nós — o teu presente nacional é testemunho disso.

Cedi, e com esse gesto fui colando os fragmentos do que restava de mim, como se cada palavra tua fosse um abraço antigo a regenerar-me.


Que saudades do teu toque gentil, do teu sorriso tranquilo, da gargalhada musical que me desarmava, da tua preocupação genuína em tentar saber como estou, mesmo quando já sabias.


Senti a tua falta.

Mas agora sei onde estás.

E cada célula minha vibra com o desejo de deixar este palácio, este refúgio onde me escondi de ti, e partir na tua direção.


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
 
Wonderland Alice. Design by Exotic Mommie. Provided By Free Blogger Templates | Freethemes4all.com
Free Website templatesfreethemes4all.comLast NewsFree CMS TemplatesFree CSS TemplatesFree Soccer VideosFree Wordpress ThemesFree Web Templates