quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Crave


Fazes-me lembrar aquele actor de semblante galante, sorriso milimetricamente perfeito e simpatia que transborda no olhar. A tua voz, quase em sussurro, escapa-te com naturalidade, enquanto ris discretamente com os olhos em cada tema partilhado. O contraste surge quando a conversa resvala para territórios menos luminosos: o teu olhar tolda-se, adquire peso, como se carregasse o fardo de um silêncio antigo.


Estás na posição certa, não estás? A tua simpatia corre-te no sangue, fluindo como um rio obediente em direcção ao mar.

És intenso, tão intenso quanto eu. Não hesitas em sustentar o meu olhar, como se ambos procurássemos, na profundidade alheia, decifrar segredos e paixões soterradas.


Cheguei tarde. A consulta contigo prolonga-se enquanto os teus colegas se vão retirando, um a um, com despedidas fugidias até ao dia seguinte. Ficamos sozinhos. Pedes-me licença para baixar persianas e grades, enquanto me desfaço em desculpas, quase suplicantes:


— Perdoe-me o atraso. O trânsito engoliu-me e foi impossível chegar mais cedo. Odeio atrasos! Posso regressar amanhã, em hora decente… não quero incomodar.


Sorris apenas com os olhos, inescrutável, enquanto continuas a encerrar o espaço. E, finalmente, quando me encaras, o sorriso permanece:


— Estou aqui para servi-la da melhor forma possível, e assim será. Não se preocupe: ninguém aguarda a minha chegada. — voltas ao balcão, mas do meu lado, demasiado próximo. — Continuamos?


A proximidade é tal que sinto a tua respiração quente no meu pescoço. Manténs a postura profissional, mostras artigos, prós e contras, valores e opções de cores… mas sempre perto, perigosamente perto, roçando a provocação, quase murmurando-me ao ouvido.


Estremeço. Tu sorris. E, num gesto abrupto, as tuas mãos cercam o meu rosto, olhos cravados nos meus, antes do sussurro:


— Prometi servi-la da melhor forma. Não sei se será a melhor, mas é impossível não tentar.


O beijo acontece: denso, arrebatado, um abraço que é turbilhão.

Logo a seguir, a tua voz ainda colada ao meu ouvido:


— Há tanto tempo que desejava isto, Alice.


A minha resposta foi puxar-te contra mim. Botões voaram da tua bata, as minhas pernas enlaçaram-te, mãos famintas a caminho da fivela do teu cinto, olhos nos olhos, num compasso voraz.


— E a câmara da loja? — ainda consigo perguntar.

— Desliguei-a, mal entraste.


Essa resposta foi o gatilho para a partida. O tempo deixou de existir. O meu corpo reconheceu o teu como se nos tivéssemos encontrado noutra vida: respirações em uníssono, movimentos contínuos, magistralmente alinhados, até que qualquer resquício de pudor se dissolveu no abandono absoluto.


Partimos juntos. Chegámos juntos. O êxtase deu lugar a um sorriso cúmplice, ternamente polvilhado de toques breves.


— E agora? — ousas perguntar.

— Agora? Pago o que vim buscar… e vamos jantar. — sorrio, roubando-te mais um beijo.

— Combinado. Mas o vinho escolho eu.


O teu sorriso, esse sorriso de galã, ilumina a desordem da loja: roupas espalhadas, cabelos desalinhados, o cenário perfeito de um desvario memorável.


domingo, 17 de agosto de 2025

Farewells



Já reparaste que nascemos a despedirmo-nos? A vida inteira é uma cadência de partidas, um fio contínuo de pequenas e grandes rupturas. Ao nascer, despedimo-nos do ventre que foi abrigo quente e silencioso. Depois, somos obrigados a afastar-nos dos pais para ingressar num infantário qualquer, onde o desconhecido se torna rotina. Crescemos e deixamos para trás a chucha, essa pacificadora ingénua de angústias, mas não só: despedimo-nos também daquela figura cuidadora que nos amparava quando o pai e a mãe não estavam, para avançarmos rumo à pré-escola.


E a cada etapa a vida insiste em acrescentar experiências ao mesmo tempo que subtrai presenças. Despedimo-nos da última educadora para enfrentar a gravidade da professora primária. Mais tarde, despedimo-nos dela também, que nos guiou com paciência nas letras e nos números, para mergulharmos num oceano de professores desconhecidos. Despedimo-nos ainda de amigos que imaginávamos eternos, mas que se perderam em mudanças de residência, em silêncios irreversíveis, em personalidades que, outrora tão paralelas, se tornaram progressivamente dissonantes.


Na vida adulta, a coreografia das despedidas mantém-se implacável. Dizemos adeus às reuniões familiares, outrora tão numerosas quanto estrondosas, até que o barulho se dissolve em memórias. Despedimo-nos daquela avó que era tudo, despedimo-nos dos pais ao fechar a porta daquela que foi a nossa casa, para que a mesma chave passe a abrir apenas o nosso palácio solitário. Despedimo-nos do primeiro grande amor, aquele que era para sempre, mas que ficou suspenso, inacabado, quase sepultado em silêncio.


E mesmo no envelhecimento, a despedida continua a ser companheira. Perdemos, gota a gota, a saúde. Perdemos a elasticidade do corpo, a paciência para noitadas, sejam elas de trabalho árduo ou de lazer efémero.


É verdade que também ganhamos. Cada experiência, por mais corrosiva que seja, deixa sempre um resquício enriquecedor. Mas neste instante eu sinto-me quebrada, cansada de despedidas, farta de me despir continuamente de afectos e presenças. Não quero mais afastar-me. Quero permanecer. Quero-me aqui, inteira.


House & Home. Casa & Lar. Duas palavras quase gémeas, mas tão distantes na essência. Chega de rejeição. Chega de trauma. Quero-me aqui, contigo, como tem de ser. Chega de tempestades. Quero-te aqui, comigo, como deve ser.


quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Anchor

 

A tua presença, antes pacífica e segura, cutuca-me agora, criando um desassossego tal que a trepidação faz abrir as portas daquele armário sombrio e empoeirado, esquecido no sótão da minha alma.

Mas não és propriamente tu. São os meus fantasmas.

Tentam minar-me. Transpõem para o presente memórias passadas de dor, rejeição, mágoa, desdém. Vestem-te com os trapos dos outros. Fazem-me desconfiar de ti com olhos que não são meus — são olhos antigos, partidos, vindos de um tempo onde amar era perigoso.

Estou assim: sentada no sótão, arrasada emocionalmente, com os meus fantasmas a rasgarem-me as vestes e a pregarem-me ao chão…

…quando sinto a Petra entrar de rompante, não pela porta do sótão, mas pela entrada principal do palácio, com um estrondo.

No meio da minha auto infligida mágoa, o meu lado racional preocupa-se com os aldeões — sempre tão assustados com ela em calma, quanto mais em tempestade.

Mas não preciso dizer-lhe onde estou.

A Petra sente-me. Conecta-se ao meu tumulto interior como um cão a farejar a perdiz caída com um chumbo de pólvora.

Chega até mim, furiosa de lucidez, agarra-me pelos ombros, e abana-me com força:


— O que estás a fazer contigo, Alice?! Pára! Um pontão é um porto seguro. A tua ancoragem. Pára de ceder ao trauma!


Depois olha em redor, com aqueles olhos verdes tão intensos que quase fazem esfumar os fantasmas. E por um instante, volto. Ao presente. À razão. Exausta, mas lúcida.

E quando dou por mim, estou na cozinha.

O ar perfumado de café.

A Petra corta tiras finas de maçã verde como tanto gosto. Sorri-me finalmente, sem grande doçura, mas com a ternura de quem está. De quem fica.


— Se te voltares a perder, volto para estarmos juntas aqui. Mas por agora, Alice… simplesmente fica.


quarta-feira, 30 de julho de 2025

Yield


Cedi.

No âmago da minha mágoa, neste silêncio ensurdecedor que se impôs entre nós, cedi.


Num dos raros instantes em que me deixo ficar diante da televisão, ouvi uma notícia sobre as dificuldades da tua profissão estival. A culpa é tua. Onde estás?

Sinto-te em falta como quem sente a ausência de uma estação inteira.


Cedi.

Sob o risco iminente de me estilhaçar ainda mais, cedi.


E foi então que me elevei.

Regressaste a mim como se o tempo se tivesse curvado em reverência ao que fomos.

Não te esqueceste de nós — o teu presente nacional é testemunho disso.

Cedi, e com esse gesto fui colando os fragmentos do que restava de mim, como se cada palavra tua fosse um abraço antigo a regenerar-me.


Que saudades do teu toque gentil, do teu sorriso tranquilo, da gargalhada musical que me desarmava, da tua preocupação genuína em tentar saber como estou, mesmo quando já sabias.


Senti a tua falta.

Mas agora sei onde estás.

E cada célula minha vibra com o desejo de deixar este palácio, este refúgio onde me escondi de ti, e partir na tua direção.


quarta-feira, 23 de julho de 2025

Vestige

 

Acordo cedo. Espreguiço-me com intenção, como se pudesse, num único gesto, expulsar da pele a lassidão inteira da madrugada. Abro as portadas da janela e deixo que os primeiros raios de sol me toquem; não de forma tímida, mas com a delicadeza insistente de quem beija sem pedir licença. A brisa matinal envolve-me com um arrepio quase cerimonial, e sorrio ao ver a neblina, ainda teimosa, a coroar o topo da serra como véu antigo sobre uma cabeça sonhadora.


Estou longe do meu palácio. O ar que respiro já não traz vestígios de pinhal, nem o travo agreste do alecrim, nem o perfume terroso dos orégãos. É brisa de mar, agora. De sal entranhado. De portadas carcomidas pelo vento e sujas de areia e saudade.

A chegada teve um sabor agridoce, desses que não se esquecem com o tempo. Voltar à nossa praia e não ver a tua torre. Não te encontrar nela. Estamos, agora, separados por um oceano e por um silêncio ensurdecedor que insisto, por teimosia ou luto, em manter ininterrupto.


Quem ocupou o teu lugar foi uma miúda. Insolente, a julgar pela reacção crispada do Fernando. Falta-lhe a tua atenção paciente, a tua dedicação serena, a tua simpatia luminosa, até a tua humildade discreta. Não me parece má pequena, confesso. Usa mate, como tu. Talvez a única semelhança que partilham, além da profissão estival, essa que em ti era vocação, e nela parece apenas ocupação.


Estendo-me na toalha. Respiro fundo, de olhos fechados. Gargalhadas estalam perto de mim, embora não escute o que as originou. Mais longe, ouvem-se crianças; os seus risos e gritos alternam como marés, chapinhando e fugindo das ondas como se a vida fosse só isto: fuga, água e riso.


A Petra chega, como sempre, sem aviso e para espanto geral. O seu ar pétreo, quase marmóreo, contrasta com as peles morenas e ressequidas dos demais. Mas há nela uma beleza que se impõe, sem pedir licença, altiva, solene, soberana. Surge sempre nos meus dias mais frágeis, como se tivesse um sexto sentido, afinado à minha dor.


A culpa é tua. Onde estás?

Sinto a tua falta. De forma crua. Quase física.

E não sei onde pousar essa ausência sem a estilhaçar ainda mais.

domingo, 29 de junho de 2025

Unravel

 


Sou um ser de combustão interna.

Carrego em mim uma intensidade quase vulcânica, dessas que não arde à vista, mas consome por dentro, devagar, com uma sofreguidão sôfrega e luminosa.

Sinto com a ferocidade dos que não sabem sentir de forma morna.

Tudo em mim é exponencial: o amor, a ausência, o desespero, o riso descompassado, a ternura cruel.


Sinto a tua falta.

Não de ti, na tua versão presente e entorpecida, mas da projecção imaculada que foste em mim.

Do que me fizeste sentir: aquela vertigem doce e perigosa que só os amores contaminados pelo abismo sabem provocar.

Os anos passam, mas a minha essência permanece intacta: selvagem, volátil, irredutivelmente sonhadora.

Continuo enamorada da vida nos seus interstícios; não no que se exibe, mas no que se insinua.


Camuflo-me na minha serra, no ventre húmido da floresta.

Sorrio ao esquilo que salta, cúmplice, e acelero o passo na passagem abrupta da cobra nervosa que, ironicamente, teme mais o meu pisar do que eu a sua dança rastejante.

Continuo a viver entre a solitude e o devaneio, entre os ecos da Petra e os teus assaltos nocturnos, quando me invades no sono com a delicadeza venenosa de quem já não tem lugar.


E o quotidiano, esse porto melancolicamente seguro, continua.

Nem sempre me apetece ancorar.

Gosto do mar revolto, das tempestades que me lembram que estou viva.

Mesmo quando as ondas me rasgam, sou eu, ainda eu.


O último ano foi uma travessia entre sombras.

Perdi o que não me tocava.

Mas também perdi o que me dilacerava de tão fundo que era o corte.

Cruzei caminhos com predadores suaves; manipuladores encantadores, narcisistas sofisticados, que tentaram desestruturar a minha verdade.

E quase conseguiram.

Mas a minha essência, ainda que em ruína, não se curva.

Ninguém se sobrepõe ao que sou.

Posso sangrar até à exaustão, mas continuo em pé, imperfeita e íntegra.


E houve também milagres:

Pessoas que me leem em silêncios, que entendem uma vírgula como se fosse um grito, que atravessam décadas ao meu lado sem ruído.

Tive reencontros com a electricidade dos primeiros toques, dos olhares que acendem pele.

O arrepio adolescente reencontrou-me… e eu deixei.


Cresço. Mesmo quando estagno, cresço.

Sou impulsiva, por vezes cruelmente exacta, outras vezes terrivelmente doce.

Sirvo-me a mim mesma com a brutalidade de quem se conhece.

E está tudo bem.

Não sereno.

Não redondo.

Mas visceralmente meu.


E isso… isso basta.


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
 
Wonderland Alice. Design by Exotic Mommie. Provided By Free Blogger Templates | Freethemes4all.com
Free Website templatesfreethemes4all.comLast NewsFree CMS TemplatesFree CSS TemplatesFree Soccer VideosFree Wordpress ThemesFree Web Templates