quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Wonderland


(Eu) sou a Alice.

Sou feita de intensidade indomada e lucidez a mais. Penso demais, sinto antes do tempo, antecipo a dor como quem monta guarda à porta da perda. Não espero que me deixem. Quando começo a perceber o silêncio, já estou a fechar a porta por dentro. Chamo-lhe autonomia. No fundo, é cautela com boa dicção.


Sou lúcida ao ponto de me doer. Vejo padrões, leio entrelinhas, detecto microfugas emocionais como quem fareja incêndios antes do fumo. Isso não me salva. Só me torna consciente enquanto ardo.


Tenho paixão em excesso e recipientes a menos. Quando gosto, não gosto com prudência. Gosto com os dentes, com o peito aberto, com a urgência de quem sabe que tudo pode acabar de repente. E quase sempre acaba. Não porque não fosse real, mas porque a minha fome assusta quem só vinha provar.


Carrego uma loucura funcional. Trabalho, crio, cuido, penso, decido. Por fora, sou organizada. Por dentro, há um carnaval silencioso. Uma mente que não desliga, emoções que não pedem licença, uma criança que percebeu cedo que amar exige coragem e que depender implica risco.


Sou independente. Apesar de tudo, não necessito de ninguém. Quando fecho a porta, por mais mágoa que sinta, não é pela ausência do outro. É pela rara constatação de que não há, no mundo, alguém com o mesmo grau de loucura capaz de me compreender verdadeiramente.


Habito um palácio erguido na serra. Não é feito de ouro nem de aplausos, mas de silêncio, altura e ar rarefeito. Para lá chegar é preciso perder-se. E eu perco-me muitas vezes. Na serra, encontro-me. No isolamento, organizo o caos. O mundo fica distante, pequeno, quase irrelevante.


Os aldeões observam-me de baixo, sempre com um misto de espanto e receio. Não sabem se desço para ficar ou se volto a desaparecer entre as árvores. Não me pertencem e eu não lhes pertenço. Sou a figura que passa e deixa rasto, nunca permanência.


Os meus cabelos dourados soltos ao vento são tão indomáveis quanto eu. Não obedecem, não assentam, não pedem permissão. A minha pele é cálida como mármore frio. Aproxima-se quem quer, mas poucos permanecem. O toque raramente alcança o que está por baixo.


Mesmo acompanhada, conheço a solitude da loucura. Há quem veja o invólucro, quem admire a forma, quem se encante com a superfície. Poucos suportam a profundidade. Poucos escutam o eco.


Sou cansada. Mas não vencida. Frágil, mas atenta. Capaz de amar com uma profundidade que mete medo, inclusive a mim.


E continuo aqui.
Mesmo com tudo isto.
Talvez precisamente por tudo isto.


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