quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Dueto (parte III)

 Noto um certo entusiasmo da tua parte. Mas fico apreensiva com a observação à minha alma. Sou algo obscura, não me agrada essa revelação. No entanto, já permiti a tua vinda. Será o que tiver de ser. 

 Segue-me, então. Comecemos pela biblioteca e depois logo terás carta branca para o que considerares mais proveitoso.  pisco-te o olho, provocando. 


Sigo em passo seguro observando-te de soslaio. Homem maduro, em boa forma física, dotado de inteligência apurada e, de acordo com alguns trabalhos fotográficos que me deste a conhecer outrora, com uma capacidade incrível de percepção do outro. 

Trinco o lábio com a ansiedade do que virá. Estarei eu à altura do desafio?


***


Instalo o material de iluminação, mantendo quase sempre um olho em ti. Noto que me observas com curiosidade, tentando disfarçar.

Peço-te que te sentes à secretária, procuro um ângulo lateral, a 45º, que permita ver-te da cabeça aos pés, sentada na cadeira. Isso permite também que a luz da janela crie uma aura nos teus cabelos. Nesse quase contra-luz, sobressaem do teu rosto os olhos e o sorriso.

Viajo com os olhos pela linha da tua mão elegantemente pousada sobre o papel, subo pelo braço, detenho-me um pouco na forma do teu peito que a roupa que escolheste faz sobressair, desço pela anca esquerda, continuo pela perna esbelta, até ao pé.

Gosto do que vejo e tento manter a concentração. Estou ali para fotografar!


***


Sinto o sol no rosto quando me sento na secretária e olho para nenhures, tentando descontrair e abstrair-me da objectiva apontada a mim. O tempo parece não passar e o tic-tac do relógio parece estar em câmara lenta. 

Fico curiosa do porquê de não ouvir o click da máquina e fixo o olhar em ti. Vejo um rubor súbito no teu rosto, denunciando uma… distracção evidente. Sorrio. 


 A câmara tem temporizador que possa tirar as fotos por ti?


***


Percebo que fui apanhado. Finjo que não percebi a ironia e respondo, o mais naturalmente possível:


— Não, preciso só de compor uma mecha de cabelo que está a perturbar o enquadramento Posso?


Faço a pergunta, mas, sem te dar tempo de falar, aproximo-me de ti, coloco os dedos por baixo do teu cabelo, afloro-te o pescoço e a nuca com as costas da mão Sinto-me estremecer, e sinto o teu estremecimento também. Terá sido da surpresa, ou algo mais?


— Pronto, assim está melhor


***


Sinto e vejo a minha pele a reagir ao teu toque, à medida que a tua mão desliza na minha nuca. O dia está a ficar mais frio, mas mal o sinto. Pelo contrário, sinto um calor confortável a envolver-me da cabeça aos pés e quase me esqueço do desconforto que a sessão me provoca. 

Observo-te quando te afastas novamente, procurando por um indício daquilo que, no fundo, sei que desejas. Sorrio novamente na expectativa. 

Sem demoras, levanto-me e encaminho-me para a porta. 


 Se não te importas, acho que estou a precisar de beber alguma coisa para descontrair. Trago para ti também? Espero que não estejas com pressa.


***

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