terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Thaw


Há criaturas humanas dotadas de uma habilidade rara e quase alquímica: a de dissolver armaduras interiores forjadas em aço temperado pela sobrevivência. Por mais glacial que eu me torne, hermética como uma noite de inverno em fúria marítima, existe sempre alguém capaz de me desarmar com a simplicidade devastadora de um primeiro raio de sol após a tempestade.

Desperto com a claridade inaugural da madrugada. A luz ainda tímida infiltra-se como um segredo mal guardado. A neblina permanece suspensa no topo da serra, densa e silenciosa, enquanto as copas das árvores se revelam aos poucos, imobilizadas numa composição pictórica de outro século, como se um pintor melancólico tivesse escolhido óleos de paleta fria para retratar este Outono tardio e gélido. Do lado oposto, irrompe o astro-rei, impaciente e soberano, derramando uma luz dourada, quase insolente, que rasga a névoa sem pedir licença, aquecendo o ar com promessas de permanência e acordando a paisagem de um torpor antigo.

Sinto a pele eriçar-se apenas pelo frio. Envolvo-me numa túnica de malha espessa, leitosa, quase lunar, numa tentativa vã de reter o calor. Ainda assim, desço as escadas de pernas nuas e pés descalços, entregando-me com prazer à frieza implacável do mármore, cúmplice antiga das minhas manhãs.

Esperas-me na cozinha. Empunhas uma caneca fumegante como quem segura um pequeno ritual doméstico. O líquido negro exala um aroma denso, profundo, quase ancestral. Sorrio-te. Sabes que as manhãs me roubam as palavras e devolvem-me apenas gestos. Aproximo-me em silêncio, retiro-te as canecas das mãos com a naturalidade de quem já pertence, e deixo-me cair no teu abraço. Os meus lábios encontram os teus num beijo lento, ainda impregnado de sono e promessas tácitas.

Ficas ali, imóvel, como se compreendesses que aquele instante não deve ser apressado. As tuas mãos ancoram-me à realidade enquanto o mundo, lá fora, continua a acordar. O calor do teu corpo infiltra-se por baixo da lã grossa, dissolvendo o frio, desfazendo a distância, silenciando o ruído interior. É nesse espaço suspenso, entre o primeiro café e a primeira palavra, que a minha armadura cede sem resistência, rendida não à força, mas à presença.

Há criaturas humanas dotadas de uma habilidade rara e quase alquímica: a de dissolver armaduras interiores forjadas em aço temperado pela sobrevivência. Por mais glacial que eu me torne, existe sempre alguém capaz de me desarmar com a inevitabilidade luminosa de um sol que regressa.


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